Canoa da Picada - modelo construído por Rui de Carvalho,
navegando no jardim da Algodeia, em Setúbal.
(Video disponibilizado por Pt.Nauticmodel)
«Inácio era ainda uma criança quando seu pai decidiu deixar Olhão e rumar Moçâmedes, como muitos outros pescadores olhanenses o tinham feito já. Os parentes de Inácio em Moçâmedes tinham conhecimento dos preparativos para a viagem e aguardavam notícias do dia provável da sua chegada.
«Em Olhão o pai de Inácio apetrechou a sua canoa de pesca do alto, revestiu-a a folhas de cobre, obteve autorização de saída da capitania e preparou-se para zarpar. Levava alguns familiares e amigos a bordo e queria levar também o seu rebento Inácio. Mas Inácio queria ficar com sua mãe em Olhão e à hora de partir atravessou baldios e areais e escondeu-se. Procuraram-no por todo o lado e não foi encontrado. Só regressou a casa, para junto de sua mãe, quando viu do esconderijo, a canoa de seu pai, já longe, a navegar, de velas enfunadas.
«Alguns dias depois a tragédia abateu-se sobre aquela canoa de pesca do alto que ousava atravessar perigosamente o Atlântico até Angola, então possessão portuguesa de África.
«Perto da Serra Leoa, Neptuno bramiu a sua raiva àquela ousada gente, e a pequena canoa de pesca do alto sucumbiu na refrega, num mar que não era o seu. Fora vencida pelas vagas alterosas e afundara-se.
«Inácio acabou a narrativa com uma profunda tristeza no olhar. Quantas vezes não teria contado esse episódio da sua vida de criança com a mesma tristeza que a distância no tempo não dissipou.
«Contei-lhe que ouvira de minha mãe, a história do naufrágio dos Trocatos, ainda criança, em África e da forte impressão que me causara a ponto de não a ter esquecido. Parecia que se ligava àquela história de Inácio mas vivida pelos seus familiares em Moçâmedes: contou-me minha mãe das missas rezadas pelos familiares dos Trocatos, na esperança de ainda serem encontrados com vida perdidos na imensidão do mar, do desespero vivido, das idas à praia, vezes sem conta, sempre que alguma vela surgia no horizonte à entrada da baía. Seriam duas partes duma mesma história ou teria havido um duplo naufrágio naquela época?
Aquela tragédia marcou Olhão e a sua diáspora no sul de Angola nos primeiros anos da década 1920.
«Inácio achava-se um "sobrevivente". Na despedida ofereceu-me uns peixes do seu balde preto. Tinha trazido a mais para oferecer, caso encontrasse um amigo, e ofender-se-ia se eu os recusasse. Solidariedade olhanense?
«Inácio nunca emigrou. Tornou-se pescador e foi envelhecendo no mar da sua Terra.
«Sobre este naufrágio escreve o grande historiador olhanense Dr. Alberto Iria numa publicação de 1938:
«"A última embarcação que seguiu para Moçâmedes, há pouco mais ou menos 15 anos, foi a canoa da picada «Zá-Zá» que, cheia de gente moça e aventureira, saiu um dia da barra de Olhão para nunca se ouvir dizer nada do seu destino".»
Modelo artesanal construído pelo mestre João Neves,
«As canoas da picada eram barcos de pesca e de comércio ligado à pesca. Encontravam-se em Portugal, nos rios Tejo e Sado e na costa sul, designadamente nos portos de Olhão e Fuzeta, no século XIX e princípio do século XX.
«Eram utilizadas na pesca do alto, mas a sua principal actividade era a da compra de pescado em pleno mar, aos pescadores, sendo o mesmo transportado para qualquer porto. As canoas da picada saiam dos portos carregadas de sal, que servia para a conservação do pescado que compravam no mar.
«Quando a carga era de sardinha, esta era geralmente copejada ou desenvazada das redes para o convés da canoa, salpicada de sal e acondicionada no porão. Esta sardinha era conhecida por “picada”, termo que vai completar o nome da embarcação. O comprimento destes barcos variava entre 15 e 17 metros.»