sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Canoa da Picada - modelo construído por Rui de Carvalho. Ver mais imagens aqui →.

Canoa «Zá-Zá»

     «Inácio era ainda uma criança quando seu pai decidiu deixar Olhão e rumar Moçâmedes, como muitos outros pescadores olhanenses o tinham feito já. Os parentes de Inácio em Moçâmedes tinham conhecimento dos preparativos para a viagem e aguardavam notícias do dia provável da sua chegada.
     «Em Olhão o pai de Inácio apetrechou a sua canoa de pesca do alto, revestiu-a a folhas de cobre, obteve autorização de saída da capitania e preparou-se para zarpar. Levava alguns familiares e amigos a bordo e queria levar também o seu rebento Inácio. Mas Inácio queria ficar com sua mãe em Olhão e à hora de partir atravessou baldios e areais e escondeu-se. Procuraram-no por todo o lado e não foi encontrado. Só regressou a casa, para junto de sua mãe, quando viu do esconderijo, a canoa de seu pai, já longe, a navegar, de velas enfunadas.
     «Alguns dias depois a tragédia abateu-se sobre aquela canoa de pesca do alto que ousava atravessar perigosamente o Atlântico até Angola, então possessão portuguesa de África.
     «Perto da Serra Leoa, Neptuno bramiu a sua raiva àquela ousada gente, e a pequena canoa de pesca do alto sucumbiu na refrega, num mar que não era o seu. Fora vencida pelas vagas alterosas e afundara-se.
     «Inácio acabou a narrativa com uma profunda tristeza no olhar. Quantas vezes não teria contado esse episódio da sua vida de criança com a mesma tristeza que a distância no tempo não dissipou.
     «Contei-lhe que ouvira de minha mãe, a história do naufrágio dos Trocatos, ainda criança, em África e da forte impressão que me causara a ponto de não a ter esquecido. Parecia que se ligava àquela história de Inácio mas vivida pelos seus familiares em Moçâmedes: contou-me minha mãe das missas rezadas pelos familiares dos Trocatos, na esperança de ainda serem encontrados com vida perdidos na imensidão do mar, do desespero vivido, das idas à praia, vezes sem conta, sempre que alguma vela surgia no horizonte à entrada da baía. Seriam duas partes duma mesma história ou teria havido um duplo naufrágio naquela época?
Aquela tragédia marcou Olhão e a sua diáspora no sul de Angola nos primeiros anos da década 1920.
     «Inácio achava-se um "sobrevivente". Na despedida ofereceu-me uns peixes do seu balde preto. Tinha trazido a mais para oferecer, caso encontrasse um amigo, e ofender-se-ia se eu os recusasse. Solidariedade olhanense?
     «Inácio nunca emigrou. Tornou-se pescador e foi envelhecendo no mar da sua Terra.
     «Sobre este naufrágio escreve o grande historiador olhanense Dr. Alberto Iria numa publicação de 1938:
     «"A última embarcação que seguiu para Moçâmedes, há pouco mais ou menos 15 anos, foi a canoa da picada «Zá-Zá» que, cheia de gente moça e aventureira, saiu um dia da barra de Olhão para nunca se ouvir dizer nada do seu destino".»


Texto de Cláudio Frota, do blogue 'Memórias e Raízes '.
Modelo artesanal construído pelo mestre João Neves,
com o comprimento de 69 centímetros.


     «As canoas da picada eram barcos de pesca e de comércio ligado à pesca. Encontravam-se em Portugal, nos rios Tejo e Sado e na costa sul, designadamente nos portos de Olhão e Fuzeta, no século XIX e princípio do século XX.
     «Eram utilizadas na pesca do alto, mas a sua principal actividade era a da compra de pescado em pleno mar, aos pescadores, sendo o mesmo transportado para qualquer porto. As canoas da picada saiam dos portos carregadas de sal, que servia para a conservação do pescado que compravam no mar.
     «Quando a carga era de sardinha, esta era geralmente copejada ou desenvazada das redes para o convés da canoa, salpicada de sal e acondicionada no porão. Esta sardinha era conhecida por “picada”, termo que vai completar o nome da embarcação. O comprimento destes barcos variava entre 15 e 17 metros.»

Texto e imagem do blogue 'Barcos da Costa Portuguesa'
imagem alojada em www.flickr.com
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